“Nesta capela, algumas mulheres mordiam o santo que aqui havia e comiam um bocadinho da sua madeira.”
Estamos na Mata do Bugalhão, situada na Serra do Montemuro, no norte de Portugal. Acompanha-nos Toni Costa, um jovem habitante de uma aldeia próxima chamada Cetos. É ele que nos vai mostrar a mata e um pouco do Montemuro, nas palavras do geógrafo Amorim Girão, “a serra mais desconhecida de Portugal”. Não é fácil conhecermos a floresta sozinhos, porque assenta sobre socalcos seculares feitos pelo homem como se fossem escadas gigantes na montanha. Quer isto dizer que não há trilhos marcados e os caminhos não têm todos continuação.
Num passado recente, a agricultura e a pastorícia eram o principal sustento da população local. Nessa altura, não havia tantas árvores nos socalcos, porque os campos ou eram cultivados ou estavam ocupados por ovelhas e vacas arouquesas, explica-nos o Toni.
Atualmente, as árvores ocultam uma grande parte desses socalcos, cobrindo a encosta da montanha delimitada pelo rio Vidoeiro e pelas ribeiras do Seixo e da Carvalhosa. No total, a mata atinge uma área de cerca de 200 hectares, sendo uma das maiores do nosso país, dominada essencialmente por castanheiros e carvalhos, muitos deles centenários.
O nome “Bugalhão” deriva de bugalho. Apanho um do chão e observo-o. Cabe-me na mão. É castanho, tem uma forma arredondada e alguns piquinhos à superfície. Interrogo-me para que serve, sabendo que na natureza tudo tem um propósito. É novamente o Toni que me esclarece: “Os bugalhos são uma proteção natural dos carvalhos. Servem de ninho para os insetos que, caso contrário, os matariam.”
Além de bugalhos, a terra está cheia de folhas, de bolotas e de ouriços. “As castanhas que caem nos caminhos, podemos apanhá-las.” Por isso, rapidamente encho os bolsos do casaco, para as assar quando chegar a casa. Se formos mais atentos, no outono, também podemos descobrir cogumelos. Os mais bonitos são vermelhos e cor-de-laranja, mas esses são venenosos. Já os boletos são deliciosos e também apanhamos alguns, cortando-os cuidadosamente com uma navalha, para que voltem a crescer no próximo ano.
Pelo caminho, cruzamo-nos com um pastor e com as suas cabras. É um senhor já de idade, mas isso não o impede de se baixar para também ir colhendo castanhas do chão. Paramos para conversar um pouco. Explica-nos, então, que dantes havia rebanhos comunitários e que, no final da primavera, se costumava fazer a transumância, ou seja, levavam-se as ovelhas e cabras para o alto da serra, onde havia melhores pastagens. Hoje ainda há pastores que se juntam para o fazer durante um fim-de-semana em junho mas, à exceção do de Alhões, todos os rebanhos são privados, como o de Picão que tem cerca de cem cabeças. Quando nos despedimos, o pastor mostra-nos o seu saco de castanhas, porque nos quer oferecer algumas.
De vez em quando, vou fazendo umas pausas pelo caminho para escutar o vento a abanar os ramos das árvores e para apreciar a chuva de folhas subsequente. Os castanheiros e os carvalhos estão vestidos de tons outonais, uma mistura de amarelos, laranjas e castanhos. Musgos de um verde intenso cobrem as pedras. Inspiro fundo para sentir o cheiro da terra. É um verdadeiro banho de floresta outonal, que me faz sentir bem e revigorada interiormente.
Entretanto, ouvimos umas pessoas a cantar ao longe. Aproximamo-nos devagarinho e, entre as ramagens, vislumbro um grupo de mulheres junto a uma capelinha. Calam-se mal pressentem a nossa presença. Que pena – penso. O Toni é o primeiro a meter conversa e, afinal, uma das senhoras é a sua mãe. Voltaram todas para a sua terra depois de uma vida de trabalho nas grandes cidades ou no estrangeiro e juntas costumam fazer caminhadas pela serra, cantando canções tradicionais quando param para descansar.
É na Capela de S. Mamede que havia o tal santo que antigamente algumas mulheres lascavam com os dentes, acreditando que assim teriam leite para amamentar os filhos recém-nascidos. Espreito curiosa por uma das pequenas janelas. Contudo, mesmo depois de os olhos se habituarem à escuridão, não consigo ver a imagem. Onde está? – pergunto curiosa. Levaram-na para a igreja de Picão, a aldeia mais próxima (e a porta de entrada) da Mata do Bugalhão.
Antes de irmos embora, ainda vamos visitar uma aldeia abandonada no meio da floresta. Imagino um lugar antigo, bucólico e misterioso. Porém, encontro apenas meia dúzia de casas e várias marcas de uma ocupação recente: cimento misturado com a pedra; caixilhos de alumínio; uma antena parabólica. Curiosamente, a aldeia já tinha sido abandonada há muitos séculos atrás mas, dessa vez, os seus moradores terão fugido de uma praga de formigas.
Se a Mata do Bugalhão foi a mais bonita ou “a melhor” que alguma vez vimos? Não, mas visitá-la libertou-me da rotina diária e isso, só por si, já teria sido extraordinário. Além disso, viajei para um tempo sem pressa. Conheci pessoas boas, aprendi e surpreendi-me diversas vezes. Acima de tudo, redescobri a alegria do presente e a liberdade de não esperar que tudo seja excecional, porque – ao contrário do que nos fazem crer – nem todas as viagens têm de o ser para valer a pena.
Guia Prático
Visite Montemuro
O Toni Costa é o responsável pela empresa de turismo de natureza Visite Montemuro. Nasceu, cresceu e treinou como atleta de “trail running” na serra do Montemuro, logo é a pessoa ideal para lhe mostrar os seus encantos, as suas histórias e gentes.
Onde almoçámos
- Restaurante Típico do Mezio | Gostámos muito de comer neste restaurante situado na aldeia do Mezio, cuja especialidade é arroz de salpicão (uma dose dá para duas pessoas).
- Alternativamente, poderá comer na aldeia da Gralheira, onde existem dois bons restaurantes: o Recanto dos Carvalhos e a Encosta do Moínho. Especialidades: vitela arouquesa, cabrito e anho assados em forno de lenha, cozidos, arroz de salpicão, entre outras.
O que gostámos de visitar nas proximidades
- Cascata da Pombeira | Para chegar a esta queda de água sobre o maciço granítico do Montemuro, é preciso seguir o “PR8 – Trilho da Pombeira”. Se não quiser fazer o PR8 todo, pode deixar o carro junto à barragem entre as aldeias de Lamelas e Codeçais e depois seguir o trilho que desce, junto à ribeira;
- Gralheira | É uma das aldeias mais altas de Portugal, caracterizando-se por uma arquitetura tradicional em granito e também pelo dinamismo da sua população em crescimento;
- Planalto do Balsemão;
- Campo Benfeito | Integrada na rede de Aldeias de Portugal, é uma aldeia tradicional bem preservada, onde está sediado o Teatro Regional da Serra do Montemuro, assim como as Capuchinhas, uma cooperativa de artesanato que produz peças de lã, linho e burel.
Onde dormimos
Quinta da Rabaçosa | Há tantas coisas boas nesta quinta. Logo para começar, fica nas margens do rio Paiva. De dia, podemos andar de barco a remos, relaxar na praia fluvial, passear a pé ou de cavalo pelas suas margens e à noite, deitados na cama, ouvimos a água a correr mesmo ao nosso lado. Os quartos estão distribuídos por várias casas de pedra independentes, com vistas para o rio e para a piscina. Estão todos decorados com um estilo rústico, com móveis e objetos de antigamente. Além dos quartos, há uma casa comum de apoio, dotada de cozinha com forno a lenha, churrasqueira, sala de jantar e sala de convívio. Depois há a Fátima, a dona da quinta que a recuperou das ruínas e que, com os seus dois cães gigantes, dá alma a tudo.
Localização: na periferia da vila de Mões, a 13 km de Castro Daire e a 35 km de Viseu.
Se gostaram deste artigo, podem deixar um comentário ou seguir o Facebook e o Instagram do Viagens à Solta. A vocês não custa nada e a nós motivar-nos-á a partilhar mais experiências de viagem.
Veja ainda:
- Os nossos melhores passeios de outono em Portugal
- O que visitar nas Montanhas Mágicas (por quem lá mora)
- O que visitar nas Montanhas Mágicas, por quem lá mora (parte 2)
- Voltámos ao Trilho dos Carvalhos (Castro Daire)
- A pé até Drave quando a serra é um jardim
- Passadiços do Paiva: dicas para quem gosta de sossego
Fenomenal! Texto e fotos! Parabéns!!
Parabéns pelo artigo!!
Ficou maravilhoso e deixou-me com vontade de ir correndo pra lá!
AS fotos são simplesmente incríveis!
Um bom trabalho. Transpira paixão, conhecimento e imagens de cortar a respiração. Parabéns
Gostei muito das imagens e da história relatada. Desconhecia a origem da palavra bugalhao que me despertou muito interesse. Não conheço o local, mas qualquer dia também irei a esse lugar para apreciar a beleza dessa mata e as paisagens deslumbrantes que pude observar nas fotografias.
O meu nome de família é Bugalhão. Não sabemos como surgiu, mas algures pelo sec. XVIII, o nosso avô veio para Marvão, Portalegre. Ele, que havia começado por ter outro nome, legou-nos esse estranho nome. Todos os que temos descoberto são originários de Marvão,terra em que fazemos uma festa anual. Saber desta linda floresta levou-nos a querer um dia destes ir aí, e as indicações dadas, bem como as excelentes fotos, são um óptimo ponto de partida para combinar uma ‘invasão em massa’. Muito obrigado. Fizeram-nos, a todos os Bugalhões, um pouquinho mais felizes.
Obrigado pela partilha Luís. Boa sorte com a invasão 😀
Muito bom ! Ao ler , as palavras que gentilmente nos oferecem , é como -abrir uma cortina com jeitinho , para não nos ofuscar com a luz maravilhosa , que é a vossa descrição. Muito grata, que vontade tenho de visitar esta serra…