No dia em que Portugal jogou com o Uruguai no Mundial de Futebol, um pastor terá espatifado um rádio na Serra da Estrela. De nome Ramiro, camisa de xadrez, capa de burel pelo ombro e cajado de madeira na mão, é um dos poucos homens que, com a aproximação do verão, continuam a subir com os rebanhos à serra mais alta de Portugal em busca de melhores pastos.
Este ano, por ocasião da Festa da Transumância e dos Pastores, associámo-nos a essa deslocação sazonal dos rebanhos – chamada transumância – cumprindo a tradicional subida entre Seia e o Sabugueiro.
Às 8:30h da manhã, os pastores e o gado (aproximadamente mil cabeças), concentraram-se no Largo da Câmara e, com eles, atravessámos a cidade em direção à montanha. O que mais nos impressionou logo ao início foi a quantidade de ovelhas – nunca vimos tantas juntas apesar de nos terem dito que antigamente eram muitas mais – assim como o barulho divertido que faziam a balir e a abanar os chocalhos que levavam ao pescoço.
Ao princípio, queríamos fotografar tudo, tentando captar o melhor ângulo quer dos pastores quer das ovelhas debaixo de um fotogénico nevoeiro. Estas, porém, andavam depressa e, passado pouco tempo, já estava cansada por não subir com uma cadência regular. Como nos explicou a Célia Gonçalves das Aldeias de Montanha: “As ovelhas é que ditam o ritmo”. Por isso, em vez de estar constantemente a parar ou a acelerar para tirar fotos, fui acertando o meu passo com o delas. Às vezes, quando abrandava, sentia os cornos de uma a tocar-me ligeiramente nas pernas para continuar.
As ovelhas eram todas da raça Bordaleira Serra da Estrela. Umas têm o pêlo preto, outras castanho ou branco. O rosto é longo e os olhos grandes, ligeiramente de lado. Todavia, o que as distingue mesmo das demais são os cornos compridos em forma de espiral – os de alguns bodes enfeitados, nesse dia, com fitas e pompons coloridos de lã. Alguns também carregavam grandes chocalhos ao pescoço – tão grandes que quase tocavam no chão. Alguns pastores, por sua vez, usavam chapéus, assim como capas e bonitas roupas de burel.
A apetência mais conhecida destas ovelhas é a produção de leite que é usado na elaboração do queijo mais famoso do país: o queijo da Serra da Estrela. A carne das que têm menos de um ano de idade também é muito procurada e o borrego da Serra da Estrela, tal como o queijo, é de Denominação de Origem Protegida (DOP). Por fim, a sua lã também é aproveitada, embora já não tanto como antigamente.
Por volta das 10:00h, fizemos todos uma pausa na aldeia da Póvoa Velha. O Grupo de Percursão de Valhelhas e os Sigilatta (a tocar tão bem bombos e gaitas-de-fole) estavam à nossa espera e conduziram-nos à rua principal da aldeia para uma apetecida merenda com presunto, queijo da serra e requeijão, entre outros produtos regionais. Depois, continuámos montanha acima, embalados pelo som hipnotizante dos balidos e chocalhos das ovelhas, sempre sob o olhar atento dos cães Serra da Estrela.
Na ermida da Senhora do Espinheiro, fizemos nova pausa. Descansámos e algum tempo depois foi servido o almoço, seguindo-se momentos de convívio e animação: experimentámos a pesada capa do pastor Ramiro; rimo-nos com a aflição de um amigo a beber aguardente caseira; assistimos à devolução à natureza de uma águia reabilitada no Centro de Ecologia, Recuperação e Vigilância de Animais Selvagens (CERVAS) e ao seu comovente primeiro voo em liberdade; ouvimos contos tradicionais portugueses dentro de uma capelinha e, por fim, assistimos a um concerto de música tradicional com os Sigillata.
Às 16:00h, fomos a correr atrás das ovelhas que entretanto haviam partido em direção ao Sabugueiro, para a última etapa do dia, sorrindo novamente ao ouvir a barulheira que faziam. À chegada ao Sabugueiro, havia um autocarro para nos levar de volta a Seia. Cansados, e com o grupo já um pouco disperso, despedimo-nos à pressa para vermos o jogo de futebol.
– Como é que vão fazer para ver os oitavos de final? – perguntámos ao Ramiro.
– Vamos ouvir o relato na serra.
– E se Portugal perder?
– Espatifo o rádio todo.
Porque não tivemos oportunidade de o fazer na altura, agradecemos agora a todos os intervenientes na Festa da Transumância e dos Pastores o maravilhoso dia que passámos na sua companhia.
Guia prático para participar na Festa da Transumância e dos Pastores
Esta iniciativa é organizada pela Câmara Municipal de Seia, em parceria com a Gardunha 21, as Aldeias de Montanha e os pastores do concelho de Seia. Segundo a Câmara, “tem como grande objetivo preservar e dignificar este ofício, ainda tão enraizado na comunidade pastoril do nosso território”.
Quando é
Todos os anos, em Junho.
Caracterização do percurso
- Linear
- Ponto de partida: Seia
- Ponto de chegada: Sabugueiro
- Distância: cerca de 10 km
- Nível de dificuldade: moderado
Como participar
- É preciso fazer a inscrição no site da Câmara Municipal de Seia;
- A inscrição inclui merenda, almoço, seguro e transporte de regresso.
Preços (em 2018)
- 15 € – Adultos
- 7,5 € – Crianças (entre os 6 e os 12 anos)
- Gratuito – Crianças com idade inferior a 6 anos
Momentos da Festa
- Romaria das ovelhas à Festa de S. João, na aldeia da Folgosa da Madalena, em Seia. Neste evento, os pastores acompanhados dos rebanhos vindos de várias aldeias desfilam, à vez, em volta da capela de São João Batista, pedindo ao padroeiro um bom ano de pasto e proteção para o gado.
- Subida do gado à serra, desde o centro de Seia até ao Sabugueiro. Realiza-se todos os anos no fim-de-semana a seguir à Romaria de São João Baptista.
Informações complementares
- Posto de Turismo de Seia – Telefone: 238 317 762
- Centro de Interpretação da Serra da Estrela (CISE) – Telefone: 238 320 300
Onde dormimos
Chão do Rio, um sítio muito especial na aldeia da Travancinha.
Onde (gostámos de) comer
No dia seguinte, voltámos ao Sabugueiro para um almoço que tão cedo não esqueceremos no restaurante do Abrigo de Montanha.
O Abrigo de Montanha é um hotel de 4 estrelas com spa, quartos elegantes e acolhedores, que foi remodelado recentemente. À frente do restaurante e apoiado por uma simpática equipa, está o Chef António Batista, que nos preparou uma refeição divinal, cojugando a qualidade dos produtos da Serra da Estrela com um toque de modernidade e sofisticação. Destacamos: a manteiga de leite de cabra, o folhado com queijo da Serra; o fígado de cabrito com molho de mostarda servido dentro de uma antiga marmita dos pastores; o gelado de limão caseiro com vinho rosé e o “casamento feliz”, um doce com leite creme, arroz doce e massa folhada.
O Viagens à Solta participou na Festa da Transumância e dos Pastores, no dia 30 de Junho de 2018, a convite das Aldeias de Montanha.
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Boas viagens à solta!
Não existe nenhuma raça Bordadeira. Existe sim Mondegueira e Bordaleira.
Cumprimentos.
Foi gralha, mas já corrigimos. Obrigada!
Para o ano quero tanto fazer isto. Vamos lá ver se quando chegar a altura me vou lembrar 🙂
Há uns auxiliares de memória muito bons hoje em dia – basta colocar um lembrete no telemóvel 😉
Boa Tarde, é uma caminhada que se faz bem ou com etapas de muito esforço?
Estava a pensar fazer este ano com a pequena mas como ela vai na mochila tenho algum receio de que se torne muito cansativo.
Obrigada pelas partilhas:)
O percurso é sempre a subir, mas a um ritmo calmo (das ovelhas). Se está habituada a fazer caminhadas com ela às costas não vejo que venha a ser um problema.
Senhor Azevedo, as suas fótos são um encanto, bravo ! Dá vontade de viver uma transumância com os caēs da Serra da Estrela, bem farruscos mas bem lindos