O ar frio invade sorrateiramente as células do nosso corpo. Aproximamo-nos instintivamente procurando calor. Na penumbra, os únicos pontos de luz chegam-nos de outras galáxias. Sentimos o som de um riacho longínquo, mas não o vemos. Estamos na Cabane du Mont Fort. No dia seguinte, descobrimos os contornos da paisagem em que adormecemos: montanhas espinhosas, salpicadas de verde e branco, sem qualquer vestígio de civilização. Percorremos trilhos suspensos nas montanhas à descoberta de glaciares e vida selvagem. Palmilhamos a Haute Route: uma rota que percorre os Alpes ao longo de 200 km, ligando Chamonix, em França, a Zermatt, na Suiça.
Todos os dias partimos com os primeiros raios de sol. Com o passar das horas, por vezes chove e neva. Não importa, estamos preparados para as quatro estações. Avançamos, pé ante pé, por caminhos estreitos que nos conduzem ao coração das montanhas. Enquanto as subimos, elas parecem despir-se. As árvores são gradualmente substituídas por vegetação rasteira cada vez mais rara até desaparecer. A paisagem torna-se inóspita. O trilho faz-se, então, por caminhos de pedra pequenina que vai engrossando até formar grandes rochedos junto à base dos glaciares. Contemplamos estes monstros bem de perto e sentimo-nos pequeninos. Pisamo-los por brincadeira, mas com (muito) medo, evitando caminhar sobre eles. A água está tão fria que parece importada de outro planeta.
A paisagem muda a cada passo e, a cada passo, sentimos que algo muda dentro de nós. Com o passar das horas e dos dias, o nosso ritmo fica (cada vez) mais lento. Paramos recorrentemente e sem pressa. Fazemos companhia aos íbex que parecem meditar no nevoeiro. Brincamos às escondidas com as marmotas enquanto nos penhascos as cabras selvagens parecem querer desafiar-nos. Levantamos as mãos e sentimos que tocamos nas nuvens. Descobrir tesouros ocultos entre os rochedos faz-nos sentir novamente crianças, mas o recuo dos glaciares assombra-nos. Há demasiados motivos que nos “obrigam” a parar e a (re)pensar.
Às costas, levamos sempre uma pequena mochila que inclui comida para um ou dois dias e que reabastecemos nas aldeias ou nos abrigos onde pernoitamos. Nestes caminhos há apenas uma natureza intacta que a cada passo nos saúda.
Ao início de cada dia, os primeiros caminheiros passam por nós a um ritmo certo. Mais tarde, reconhecemos algumas caras nos refúgios onde dormimos. Esporadicamente jantamos com três caminheiros solitários que nos “acompanham” dia após dia: um israelita determinado, um chinês desgastado e um australiano simpático. À mesa, partilhamos ideias e emoções. Entre conversas animadas, descobrimos diferentes motivações, mas a mesma paixão: todos adoramos o misticismo das montanhas.
Aos fins-de-semana, as montanhas recebem a visita de pessoas que as conhecem bem. Para os suíços, as montanhas representam o mesmo que os centros comerciais para muitos portugueses: são sempre uma boa escolha, em qualquer altura do ano.
Na Cabane du Prafleuri conhecemos um agradável casal de reformados suíços que procuravam a “Edelweiss”, uma flor rara que cresce em alta montanha, conhecida como a “flor do amor” entre os seus compatriotas. Nós encontramo-la no penúltimo dia da viagem quando, a poucos quilómetros do fim do trilho do Europaweg, conhecemos o Oliver, outro suiço reformado e apaixonado por montanhas. Neste trilho, a paisagem é soberba. O caminho faz-se por um vale glaciar estreito que parece suspenso. Não conseguimos ver a altura do fosso que nos separa da montanha que avistamos do outro lado, mas descemo-la no dia anterior. Por isso, sabemos que serão certamente algumas centenas de metros de vazio.
Nesta zona, sentimos os helicópteros de resgate passar frequentemente. Hesitamos em prosseguir, mas o Oliver motiva-nos a continuar e até se disponibiliza para nos apoiar. Ele vai à frente e nós, mais lentamente, seguimos atrás. Ele pára recorrentemente para nos observar. Dá-nos conselhos para mantermos uma boa postura. Nós ouvimo-lo atentamente e avançamos com mais confiança. Nos locais de derrocada, saltamos de rocha em rocha apressadamente, mas em silêncio, para evitar novos desabamentos. Nos locais de abatimento, o coração bate ainda mais forte. Cordas e correntes presas na montanha permitem que avancemos mas, em certos locais, parece não haver sítio para colocar os pés. Tento dominar o ponto de equilíbrio do meu corpo, mas sinto-me uma trapezista a atravessar o vazio. Avanço lentamente e, a pouco e pouco, sinto que re-aprendo a caminhar!
Terminamos os dias quase sempre cansados, às vezes ensopados, mas sempre com um sorriso estampado no rosto. O jantar serve-se entre as 18 e as 19 horas e o “dress code” inclui “croques” coloridos com um número duas a três vezes acima do nosso. Para jantar, há geralmente um ou dois pratos à escolha, mas é preciso reserva. Nos abrigos mais isolados, tudo é racionado e grande parte dos abastecimentos alimentares são feitos de helicóptero. Esta é a nossa rotina, a rotina dos montanhistas.
Chegamos a Zermatt 14 dias depois do início da caminhada em Chamonix. Em Zermatt, não circulam carros mas, à semelhança de Chamonix, as ruas estão repletas de turistas barulhentos que (depois de tantos dias nas montanhas) nos atordoam. Fugimos para Gornergrat, um lugar que os guias de viagem aconselham a visitar pelo menos uma vez na vida. Valeria mesmo a pena?
Seguimos por uma linha férrea assombrosa que nos transportou, em menos de nada, dos 1.620 m aos 3.133 m. Durante a curta viagem, visões ainda bem frescas na retina do Monte Branco, salpicado de alpinistas, assaltam-nos com saudade a memória. Lá em cima, tal como na Aiguille du Midi, praticamente já não há turistas ao fim da tarde. A paisagem paralisa-nos. Dezenas de glaciares entrelaçam-se enquanto o Matterhorn se ergue com uma monumentalidade rara. Deixamo-nos ficar ali sentados e rendidos, saboreando os últimos raios de sol, com a temperatura a cair e a penumbra a voltar.
Viagem realizada em agosto de 2015
NOTA: A Haute Route original de alta montanha também vai de Chamonix a Zermatt (em diante), passando por altos picos dos Alpes e com travessia de glaciares. Trata-se praticamente de uma expedição para alpinistas. No nosso caso, fizemos a alternativa para caminhantes, tão bem descrita no guia de Kev Reynolds “Chamonix To Zermatt – The Classic Walker’s Haute Route”, e muito bem marcada no terreno.
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